"A casa dos espíritos", sentimento e memória coletiva
- Letícia Garcia
- 10 de abr. de 2021
- 7 min de leitura
Cada contato com Isabel Allende é, para mim, um arrebatamento. Só li dois livros dela, é verdade, mas, ao terminar “A casa dos espíritos”, já coloquei Isabel entre minhas autoras favoritas, mesmo que ainda tenha muito a conhecer sobre ela — são dezenas de livros publicados. “A casa dos espíritos” não é apenas literatura de alta qualidade: é o registro da memória de um tempo que não pode ser esquecido.
A obra atravessa gerações de uma família, centrada nas vidas de três mulheres — Clara, Blanca e Alba. A vida dessas mulheres complexas é atravessada pela presença de Esteban Trueba. Ao narrar o destino das suas personagens, Isabel acaba por nos contar parte da história do Chile — os humores, amores, ressentimentos e interesses que acabaram guiando a trajetória política do país.
Relações familiares
“A casa dos espíritos” fala de questões políticas e de relações familiares. As personagens de Isabel seguem a vida inteira ligadas à família, de uma forma ou de outra. Ideais e sentimentos se misturam, num campo ao mesmo tempo conflitante e conciliador. A contradição está infiltrada nas relações familiares, e existe certa visão esperançosa sobre o amor — capaz de permitir que nem tudo seja corrompido do lado de dentro.
A relação entre as mulheres da família vai além. Elas têm um lado espiritual e místico que, além de permitir o contato com os espíritos que vivem na casa, as mantêm conectadas entre gerações.
Memória coletiva
Esteban Trueba, o patriarca da família, é autoritário, violento, machista e acostumado a ter suas vontades obedecidas. Representa certo tipo extremamente real e que esteve intrincado no pensamento que levou o Chile a uma violenta ditadura.

Sim, Isabel é uma escritora que olha para dentro, para suas próprias memórias (que são refletidas em muitas personagens), mas também olha para fora, para uma memória coletiva do país. Enquanto constrói com sensibilidade personagens intimistas como Clara, usa esta mesma sensibilidade para narrar episódios dolorosos da história do Chile.
O Chile, aliás, não é diretamente citado na obra, mas é o país ao qual a autora se refere — central para grande parte das suas obras. Para mim é inevitável unir o lamento chileno ao brasileiro, dois países que passaram por ditaduras militares. Da mesma forma, é assustador perceber que certos movimentos que antecederam a ditadura narrada em “A casa dos espíritos” são perceptíveis, aqui e ali, no Brasil de hoje.
Por isso meu primeiro sentimento, ao fechar o livro, foi de desolação. Amarguras e ódios semelhantes aos narrados no livro se acumularam aqui no Brasil e conduziram ao poder quem está lá agora: um presidente que escarnece da dor e da morte. O que vem a seguir?
Fica o medo de que a história se repita. Ainda mais num país em que tantos insistem em deturpar o que foi a ditadura, e mesmo não reconhecer o que de horrível aconteceu — tortura, perseguição, censura, morte.
Se “A casa dos espíritos” chegasse a muitas mãos, a crueza sensível desta narrativa — que, ao falar do Chile, fala de toda a América Latina — talvez pudesse despertar consciências. As palavras de Isabel Allende são muito necessárias, então reproduzo abaixo alguns dos meus trechos favoritos.
Realidade histórica
“Tal como ela o tinha feito com a mãe em tempos de mudez, [Clara] levava agora Blanca para ver os pobres, carregada de presentes e consolações.
— Isto serve para nos tranquilizar a consciência, minha filha — explicava a Blanca. — Mas não ajuda os pobres. Eles não necessitam de caridade mas sim de justiça.” (A casa dos espíritos, Isabel Allende, Editora Bertrand Brasil, 1989, p. 146)
Allende nos lembra que, sem justiça social, a desigualdade nunca vai desaparecer. Caridade, por mais que atenda às necessidades imediatas de quem precisa, é como um curativo numa ferida que não cicatriza — que só a justiça faria cicatrizar.
“— Você é um perdulário irremediável, filho — suspirava Trueba. — Não tem sentido da realidade. Ainda não viu como é o mundo. Aposta em valores utópicos que não existem.
— Ajudar o próximo é um valor que existe, pai.
— Não. A caridade, tal como o seu socialismo, é um invento dos fracos para vergar e utilizar os fortes.
— Não acredito na sua teoria dos fortes e dos fracos — respondia Jaime.
— É sempre assim na natureza. Vivemos numa selva.
— Sim, porque os que fazem as regras são os que pensam como você, mas não será sempre assim.” (p. 321)
O diálogo escancara a simplificação que Esteban (reflexo de tantos outros) utiliza para justificar seus próprios privilégios, explicados pela “força”, pelo “mérito”. Desconsiderando, dessa forma, o ambiente social e histórico no qual estamos mergulhados e que interferem no rumo de nossas vidas. Esteban, por exemplo, herdou uma fazenda da família e essa fazenda contribuiu para a construção da sua fortuna.
Comecei a ler Simone de Beauvoir depois de já ter terminado “A casa dos espíritos”, e um trecho de Simone me remeteu de novo ao diálogo: “A humanidade não é uma espécie animal: é uma realidade histórica”. Aplicar leis da natureza para explicar problemas humanos desconsidera as especificidades de ser humano — a complexa rede econômica, social, histórica e cultural na qual estamos mergulhados.
Perigosa semelhança
“Para o Senador Trueba todos os partidos políticos, exceto o seu, eram potencialmente marxistas e não podia distinguir claramente a ideologia de uns e de outros. Não hesitava em expor a sua posição em público sempre que surgia a oportunidade, por isso, para todos, menos para os seus partidários, o Senador Trueba passou a ser uma espécie de louco reacionário e oligarca, muito pitoresco. O Partido Conservador tinha que freá-lo para que não batesse a língua nos dentes e não os pusesse a todos em xeque. Era o paladino furioso, disposto a travar combate nos tribunais, nas rodas de imprensa, nas universidades, onde ninguém mais se atrevia a aparecer, lá estava ele inalterável, com a melena de leão e a bengala de prata. Era o alvo dos caricaturistas que, de tanto o escarnecerem, conseguiram torná-lo popular, a ponto de arrasar em todas as eleições com os votos dos conservadores. Era fanático violento e antiquado, mas representava melhor que ninguém os valores da família, da tradição, da propriedade e da ordem. [...] Teve a habilidade de ser o primeiro que chamou à esquerda ‘inimiga da democracia’, sem suspeitar que anos depois esse seria o lema da ditadura.” (p. 332)
“[...] [Esteban] juntou-se com outros políticos, alguns militares e com gringos enviados pelo serviço de inteligência, para traçar o plano que faria tombar o novo governo: a desestabilização econômica, como chamaram à sabotagem. [...]
— Não o deixaremos em paz nem um só minuto. Terá que renunciar — disse com firmeza.
— E se isso não der certo, Senador, temos isto — acrescentou o general Hurtado pondo a arma do regulamento sobre a toalha.
[...] No prazo estipulado pela lei, a esquerda assumiu tranquilamente o poder. E então a direita começou a acumular o ódio.” (p. 370–371)
“Grande parte da classe média alegrou-se com o Golpe Militar, porque significava o retorno da ordem, da pureza dos costumes, das saias nas mulheres e o cabelo curto nos homens, mas logo começou a sofrer o tormento dos preços altos e da falta de trabalho. Não conseguia o salário para comer. Em todas as famílias havia alguém a quem lamentar e já não puderam dizer, como no princípio, que, se estava preso, morto ou exilado, era porque o merecia.” (p. 417)
Esses são alguns dos perigosos momentos em que a narrativa de “A casa dos espíritos” me fez pensar no Brasil.
A importância de lembrar
“De uma penada, os militares mudaram a história universal, apagando os episódios, as ideologias e os personagens que o regime desaprovava. [...] A censura, que a princípio só abarcou os meios de comunicação, logo se estendeu aos textos escolares, às letras das canções, aos argumentos dos filmes e às conversas privadas.. [...] Alba perguntou de onde tinham saído tantos fascistas de um dia para o outro, porque na larga trajetória democrática do seu país, nunca os tinha notado, exceto alguns exaltados [...].” (p. 415)
Impossível ler este trecho e não pensar no espanto de ver radicalidades fascistas dando as caras no Brasil desde 2018.
Aqui Isabel também fala de censura e da reescrita da história. Situações pelas quais nosso país também passou durante a ditadura militar. Em “1984”, George Orwell resume essa lógica autoritária: “Quem controla o passado, controla o futuro. Quem controla o presente, controla o passado”. Por isso, de novo, é fundamental a memória coletiva se manter viva e verdadeira, com registros e com livros como os de Isabel.
A Ama
“[...] Tiveram de enterrá-la às pressas, sem discursos nem lágrimas. Não assistiu ao seu funeral nenhum dos numerosos filhos alheios que ela com tanto amor tinha criado.” (p. 175)
A personagem Ama — que é chamada assim, sem nome próprio, com uma identidade costurada à família para a qual trabalha — é exemplo de uma realidade dolorosamente parecida com a que ainda vemos no Brasil.
Um corpo que sente
“Sabia o que estava ocorrendo no país, por isso andava dia e noite com o estômago oprimido, tremiam-lhe as mãos, e quando se inteirava da sorte de algum prisioneiro, cobria-se de inchaços dos pés à cabeça, como uma pessoa infectada pela peste. [...] Teve de acomodar os sentimentos para continuar a viver.” (p. 409)
Tive vários momentos de identificação com as mulheres deste livro — muitos deles relacionados à escrita. Mas este trecho também me tocou. A pandemia e o atual momento político que atravessamos também me trazem essa necessidade de acomodar os sentimentos para seguir encarando os dias, e também meu corpo, como o de Alba, não hesita em se manifestar quando a mente está tão atribulada.
Sobre a escrita
“Sugeriu-lhe, também, que escrevesse o testemunho que um dia poderia servir para trazer à luz o terrível segredo que estava vivendo, para que o mundo conhecesse o horror que ocorria paralelamente à existência aprazível e ordenada dos que não queriam saber, dos que podiam ter a ilusão de uma vida normal, dos que podiam negar que iam flutuando numa balsa sobre um mar de lamentos, ignorando, apesar de todas as evidências, que a poucos quarteirões do seu mundo feliz estavam os outros, os que sobrevivem ou morrem no lado escuro.” (p. 448)
Mujica uma vez disse que “cada geração aprende com aquilo que vive, não com o que as outras viveram”, e este é meu maior medo. Prefiro acreditar que é possível aprender com o passado, e a escrita torna possível colher os relatos de quem viveu o que queremos evitar.
"Em alguns momentos tenho a impressão de que já vivi isto e que já escrevi estas mesmas palavras, mas compreendo que não sou eu, mas outra mulher, que anotou nos seus cadernos para que eu me servisse deles. Escrevo, ela escreveu, que a memória é frágil e o transcurso de uma vida é muito breve e sucede tudo tão depressa que não conseguimos ver a relação entre os acontecimentos, não podemos medir a consequência dos atos, acreditamos na ficção do tempo, no presente, no passado e no futuro, mas também pode ser que tudo aconteça simultaneamente." (p. 467)
Isabel me encanta e me provoca a vontade de continuar escrevendo sempre.
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