top of page
  • Instagram - Black Circle
  • LinkedIn - Black Circle
  • Facebook - Black Circle

Criatura mais humana que monstro

  • Foto do escritor: Letícia Garcia
    Letícia Garcia
  • 23 de jan. de 2021
  • 4 min de leitura

Atualizado: 25 de jan. de 2021

"Frankenstein", de Mary Shelley, despertou em mim reflexões sobre ser humano a partir do terror envolvendo a criatura do livro. A obra fundou o gênero ficção científica na literatura.



A condição humana: medos, culpa, valores, injustiça, responsabilidade, destino. "Frankenstein", criado em 1818 por Mary Shelley, além de ser um clássico do horror é uma obra repleta de questionamentos que não envelhecem.


Muito mais do que as outras personagens, é o monstro de Shelley que leva a pensar o estar no mundo humano. "Eu era bom e compreensivo", diz a criatura, "foi a desgraça que me converteu em demônio”. Com o manto das histórias de terror a deixar-lhe mais atraente, o livro discute temas como a inexistência de limites entre bem e mal, a moral instituída — e a transposição dela —, a capacidade de criar e as responsabilidades sobre aquilo que se cria.


Fundadora da ficção científica

Com este livro, Mary Shelley fundou a ficção científica na literatura, e este fato não é suficientemente exaltado. Toda uma gama de obras acabou surgindo depois desta primeira criação.


Num primeiro momento, Mary não pôde assinar a autoria. Registros dão a entender que, neste primeiro momento, a obra recebeu boas críticas. Depois de revelada como autora, porém, ela passou a enfrentar críticas e a desconfiança de editores e da classe literária da época — que passou a acreditar ter sido o marido de Mary, Percy Shelley (também escritor), o autor da história.


A potência de uma obra escrita por uma mulher, claro, era uma afronta à sociedade machista. Torço para que Mary tenha conseguido enfrentar essa situação, talvez encontrando forças no legado da sua mãe, a escritora, educadora e filósofa feminista Mary Wollstonecraft, que ela não chegou a conhecer. O filme "Mary Shelley" (2017), aliás, tenta dar conta da história da autora. Mas vamos ao livro.


Capas de Frankenstein, livro de Mary Shelley
Foto: Laura Chouette/Unsplash

Criação e temas

Apesar de ter popularizado a criatura de Shelley, o cinema distorceu o personagem, é importante ressaltar isso. A visão que geralmente se tem do monstro não é a que encontramos na literatura. A começar pelo nome: Frankenstein é o nome do criador. Na obra, ele é chamado de “criatura”, “monstro”, “demônio”, “desgraçado” — títulos dados por Frankenstein.


Também diferente do cinema, a criatura é extremamente ágil e disposta a aprender, e se mostra culta e sensível à percepção do desprezo que sentem por sua aparência: “por que devo ser odiado, eu, que sou mais miserável que todos os viventes?”. Abandonando essa visão do monstro tolo e sem raciocínio, pode-se entrar na obra de Shelley.


A própria história do nascimento do livro é interessante. Frankenstein foi pensado a partir de um desafio de Lord Byron — poeta do ultraromantismo, trágico e intimista, assim como a autora. Numa noite em que estavam reunidos ela, Percy Shelley (então seu noivo) e John Polidori, Byron propôs que inventassem histórias de fantasmas. Daquela noite no início do século XIX saíram o poema "Mazzepa", de Byron, o romance "O vampiro", de Polidori (referência para o "Drácula" de Bram Stoker) e a obra-prima de Mary Shelley.


O livro conta a trajetória de Victor Frankenstein, estudioso de ciências naturais e alquimia, que dedica todos os seus esforços para compreender o surgimento da vida — e descobre como criar vida. Então fica dois anos estudando e montando sua criatura, se submetendo à doença e à reclusão. Quando finalmente dá vida ao corpo que montou, apavora-se com sua visão monstruosa, arrepende-se e foge do laboratório, abandonando a criatura, com desprezo por sua criação. Dessa relação criador-criatura vêm os questionamentos mais discutidos na obra.


Um deles segue o ponto de vista religioso, a partir da questão "pode o homem tomar para si o controle da vida?". Daí também vem o subtítulo, "O Prometeu moderno": na mitologia grega, Prometeu foi um titã que roubou o segredo do fogo dos deuses e deu-o à humanidade, passando a ela, com isso, a superioridade, pelo que foi condenado por Zeus.


A discussão sobre os limites da capacidade humana de criar também se deve ao contexto da época, início da Primeira Revolução Industrial na Inglaterra, quando o domínio sobre a tecnologia aumentava e a ciência progredia. A obra se atualiza se direcionarmos o olhar para os avanços tecnológicos constantes que temos hoje.


Níveis da obra

A história é narrada como que em níveis: começa com o relato do capitão Walton (que encontra Frankenstein nas geleiras do norte) à sua irmã, depois passa ao relato de Frankenstein à Walton, e então à história da criatura ao criador. Com a narração de cada personagem, é possível conhecer mais do íntimo de cada um — é esse subjetivismo, marca do período Romântico, que vai trazer questões morais a serem pensadas sob cada ângulo.


Walton demonstra compaixão por Frankenstein e também curiosidade em conhecer os segredos da geração da vida. Frankenstein, enfraquecido e culpando-se pelos atos da sua invenção, afasta qualquer chance de entendimento pelo pavor e abominação que sente pela aparência monstruosa da sua invenção. A criatura, amargurada pelo desprezo dos homens e do seu próprio criador, comete atrocidades, perdido em sua própria tragédia.


Shelley parece equilibrar a narrativa ao mostrar que o que tornou a criatura monstruosa não foi o simples fato de existir — as atrocidades podem ser vistas como reflexo das atitudes da sociedade, que o desprezou e excluiu [o que me faz pensar em "Os miseráveis", de Victor Hugo, que estou lendo agora]. O monstro e os seus atos são como que a exteriorização das maldades do homem. Como olhar para um espelho do interior: sua aparência horrenda refletiria a feiura das atitudes tomadas contra ele.


A responsabilidade sobre os próprios atos, o julgamento pelas aparências e as regras criadas pela sociedade que limitam o conhecimento sobre “ser” humano — e acabamos por tornar a nós mesmos uma criação, exterior, regida por essas aparências. Cada um criador de seu próprio ser — criatura. Tratar "o outro" como "criatura" parece contraditório, então, já que, no final, seríamos todos pele humana revestindo monstros, na busca pela compreensão.

Comments


Inscreva-se na newsletter

e não perca o próximo texto!

Nome

Email

© 2024 por Letícia Garcia. Todos os direitos reservados. A utilização de qualquer texto do site, mesmo que citada a fonte, só é permitida com o consentimento por escrito da autora.

Identidade visual por Cíntia Garcia. Orgulhosamente criado com o Wix.com

bottom of page