Peça por peça

Não se importava se tivesse que começar de novo. Gostava disso, de organizar. Dar ordem. Talvez não tivesse relação com o paralelo óbvio de poder ordenar algo na vida. Talvez tivesse.

O calor fazia-lhe bem. Sentia uma lenta tristeza escorrer toda vez que o inverno chegava, a vontade de ficar parada e quieta, sem precisar ir a qualquer lugar ou fazer qualquer coisa. As altas temperaturas fora de época, que talvez fossem um indício não muito bom da saúde do planeta, atravessavam a barreira lógica e a deixavam feliz. Aquecida.

Voltou a dobrar as roupas caídas. Camisa com camisa, calça com calça. Os suéteres ficavam junto com as outras blusas de lã. Com gola, sem gola. Meias dobradas, e não enroladas, porque enrolar desgasta o elástico. Lenços de tecido empilhados. Por que ainda tinha lenços de tecido?

No outro lado do quarto, um grito abafado. “Está fazendo tudo errado!” “Deveria ter ficado, ter reconsiderado, ter continuado tentando.” “Poderia ter perdoado!” Os casacos vão nos cabides. “Estou infeliz!” Parou. Olhou de perto. Não: ela estava de ótimo humor.

Foi levando as peças juntas para seus lugares no roupeiro. Ou melhor, para novos lugares: sutis mudanças da vez anterior. Às vezes isso acontecia sem notar e em outras a mudança era deliberada e radical. “Não!” Ouviu de novo. “NÃO!”

Tirou umas saias coloridas do fundo do armário, jogou-as na cama. Dobrou cuidadosamente, escolheu um lugar de destaque para aquele alívio cheio de cor. Algumas blusas lisas e estampadas, mudou de lugar, perto do novo canto colorido. Mudanças que ela vinha adiando, e iam acabar valendo a pena. “Você vai ter que me ouvir.” Não era mais um grito.

Ela deu um passo para trás, as mãos na cintura, as portas do roupeiro abertas, admirando a nova organização. Uma rearrumação interna completa. “Tudo bem, talvez possa acontecer uma negociação, digamos.” Inspirou. Expirou. Então virou-se.

Andou com o queixo erguido para aquele canto do quarto. De frente para o espelho.

"Agora vamos conversar.”