Rio Grande indígena
- Letícia Garcia
- 26 de jul. de 2021
- 8 min de leitura
O Jornal do Mercado registrou por anos os acontecimentos do Mercado Público de Porto Alegre. No coração da capital gaúcha, o Mercadão traz marcas típicas das tradições da cultura rio-grandense, seja em seus costumes, em seus personagens ou em bancas com produtos regionais.
A coluna Cultura Gaúcha, que tive o privilégio de assinar por 7 anos, surgiu no JM para trazer olhares sobre as coisas do Rio Grande. Em 2018, iniciei o projeto de resgatar a história étnica e cultural do estado, e o primeira reportagem, dividida em duas partes, foi sobre as culturas indígenas.

O RS tem uma formação étnica e cultural heterogênea. São muitas histórias que ajudam a compor o nosso estado. Enquanto algumas são amplamente divulgadas, como a dos imigrantes alemães e italianos, outras ficam relegadas a um segundo plano. Pois são essas histórias que precisamos recuperar. Como a da ampla e diversa cultura indígena, os primeiros povoadores do nosso território.
São cinco matrizes étnicas que compõem esse conjunto de histórias distintas: charrua (também chamada pampeana), guarani, kaingang, minuana (ou guenoa) e xokleng. Por origem linguística, os guarani* são tupi, os charrua e minuano são chon/pampa e os kaingang e xokleng são jê. A ocupação da região do nosso estado iniciou há cerca de 12 mil anos. “A constituição do espaço onde hoje é o Rio Grande do Sul, em termos étnicos e indígenas, é muito complexa.
Se pensarmos proporcionalmente, os últimos 240 anos, quando temos presença europeia e africana mais intensiva, são só 2% da história do Rio Grande do Sul — os outros 98% são história só dos povos indígenas. E os indígenas estão presentes também nos outros 2%”, resume Rodrigo Venzon. Rodrigo é coordenador institucional do Conselho Estadual dos Povos Indígenas (Cepi) e já atuou na ONG Anaí — Associação Nacional de Ação Indigenista (1982–95), em especial nos temas de políticas públicas de educação, saúde indígena e meio ambiente.
Povoamento
Os povos indígenas chegaram ao território do RS ao longo dos milênios. Os deslocamentos ligam a cultura charrua e minuano aos povos andinos e patagônicos, os guarani, aos povos amazônicos e do litoral Atlântico e os kaingang e xokleng, aos do Brasil Central e Nordeste. “Então o Rio Grande do Sul é, praticamente, um encontro de toda a América do Sul”, diz Rodrigo.
Até os anos 1600, não havia presença de europeus no RS. Em áreas abertas de campo, viviam os charrua; em regiões úmidas de banhados, os minuano; na região central, Missões e litoral, com floresta de Mata Atlântica, viviam os guarani; nas matas de araucária e nos campos de cima da serra, os kaingang e xokleng. “Temos aqui uma grande história de longa duração que está relacionada aos milhares de caçadores, coletores, pescadores e horticultores que estavam estabelecidos quando espanhóis e portugueses invadiram esse território. Toda essa história é comprovada através de utensílios manufaturados feitos de pedra e cerâmica encontrados por arqueólogos”, afirma Cláudio Knierim, historiador, pesquisador e professor de História que participou da organização do livro “Releituras da história do Rio Grande do Sul” (Corag, 2011), entre outros.
Como os indígenas são um povo de tradição oral, os registros por escrito nos legaram uma história de muitos apagamentos e lacunas, que não considera toda a riqueza cultural dos nativos. Mas sempre é tempo de recuperar.
Missões
A conquista bélica e religiosa europeia na região do RS aconteceu a partir do século XVI. No caso específico das Missões, foi imposta uma escolha aos guarani: jesuítas ou bandeirantes. “Nas Missões Jesuíticas, havia a possibilidade de manter a língua, o vínculo familiar e continuar no próprio território, enquanto no bandeirantismo tudo isso era rompido, pois os indígenas eram escravizados e deportados para outras regiões.
Então, entre acatar determinadas formas de violência na organização familiar e em outras questões pelos jesuítas ou ser escravizado pelos bandeirantes, era mais fácil se aliar aos jesuítas”, pondera Rodrigo. “A escolha dos guarani de se aliarem aos jesuítas foi estrategicamente adequada, porque permitiu uma sobrevivência por mais séculos, com todas as consequências disso.”
Os chamados Sete Povos das Missões da história do RS são uma parcela dos 30 povos do Vice-Reino do Peru e do Prata (atuais Argentina, Paraguai e sul do Brasil), com o qual elas se relacionavam comercial e politicamente. “As Missões estavam vinculadas ao processo de exploração da prata em Potosí. A produção no RS de fumo, erva-mate e charque era ligada a essa exploração pelos espanhóis, pois estavam dentro de um processo colonial”, explica Rodrigo.
Diferentes povos indígenas passaram a interagir também nesse período: os guarani foram levados a criar gado em território xokleng e a plantar erva-mate em terras kaingang. “São interações muito complexas dessa história, a maior parte não está registrada por escrito”, conta. “Existe um foco muito grande no ensino voltado só para a Europa. Os indígenas, os africanos e as suas interações são minimizadas no contexto geral.”
Miscigenação
O pertencimento espanhol das Missões é comprovado por diversos fatores, como o vocabulário, que tem palavras da língua quéchua (mate, pampa, charque, chiripá), idioma usado pelos charrua, do tronco inca. O termo “gaúcho” vem de “guaxo”, do quéchua, “wajchu”, “órfão”. “O gaúcho é o filho de mãe indígena que foi violentada pelo espanhol ou português. Isto é, a nossa origem vem da violência dos conquistadores contra as mulheres indígenas, uma coisa que também precisa ser compreendida. A própria pesquisa genética na fronteira demonstra isso”, exemplifica Rodrigo, referindo-se à pesquisa da profª Maria Cátira Bortolini, da Ufrgs. “Ela constatou que mais de 60% dos habitantes da região da campanha e fronteira oeste do nosso estado possuem uma ascendência indígena pelo lado materno, índices comparáveis ao que se encontra na Amazônia”, conta Cláudio.
Nesse ponto, é preciso encarar o doloroso preconceito cultural enraizado na construção da identidade regional, que valoriza a origem europeia, como analisa José Otávio Catafesto de Souza em artigo no livro “RS índio” (Edipucrs, 2009). Alemães, italianos e portugueses que chegavam ao país contavam com ações afirmativas do Império brasileiro, um favorecimento que dava direito privado sobre lotes de terra e mais incentivos, como equipamentos e financiamento, para que eles se estabelecessem.
Imigrantes europeus foram privilegiados pela sua suposta maior capacidade de trabalho, trazidos para substituir índios e negros africanos desconsiderados para o “projeto de nação” do governo. Em consequência, descendente de colonos tiveram maior acesso a cargos e empregos ao longo da história. Uma carga simbólica que leva a população a valorizar a sua ascendência europeia, em detrimento da ancestralidade nativa, como escreve José. Mesmo que a maior parte dos registros escritos ignore, houve, sim, uma intensa miscigenação genética e cultural entre indígenas, africanos e europeus no RS.
De forma mais ampla, a herança autóctone na cultura regional está presente na língua, nos costumes (como as relações familiares, mais indígenas que europeias), nos conhecimentos de ervas medicinais e, de forma muito intensa, na culinária.
:: SEGUNDA PARTE ::
Indígenas no Sul
Dentre as muitas histórias que formam o Rio Grande do Sul está a indígena, múltipla e diversa. As suas heranças estão no nosso cotidiano e existem comunidades presentes em todo estado. Nesta segunda matéria, que encerra a abordagem sobre os povos indígenas do RS, trago relações, legados e ações que valorizam e preservam os saberes nativos atualmente.

Charrua, guarani, kaingang, minuano e xokleng: é das interações entre esses povos indígenas e com as demais etnias que se construíram as características regionais do RS. “É preciso haver um conhecimento dessas diferentes culturas e dessas cinco matrizes étnicas do estado”, destaca Rodrigo Venzon, coordenador institucional do Conselho Estadual dos Povos Indígenas (Cepi) do RS. “Não existe um gaúcho: existe uma multiplicidade de relações a nível regional. É importante recontar essa história das relações entre os povos indígenas e com as outras populações que chegaram nessas regiões.”
Uma das heranças dessas inter-relações está na alimentação. Muitos ingredientes da gastronomia rio-grandense (e brasileira) são plantas domesticadas pelos indígenas. “A nossa alimentação tem muito a ver com a alimentação guarani: feijão, milho, mandioca, batata doce, amendoim”, explica Rodrigo. “Além dos alimentos indígenas propriamente ditos, temos alimentos sincréticos: broa de polvilho, bolo de fubá, pé de moleque, canjica, polenta e feijoada demonstram uma interação dos alimentos de origem indígena com as culturas europeias e africanas.”
Gauchismo
“A nossa mais popular bebida, que é o mate ou chimarrão, foi uma cultura que os gaúchos argentinos, uruguaios e rio-grandenses absorveram dos hábitos dos índios guaranis”, destaca Cláudio Knierim, historiador, pesquisador e professor de História. Apesar disso, a presença indígena ainda é tímida no gauchismo: na história de Sepé Tiaraju, em algumas pesquisas de Barbosa Lessa e na vertente artística do missioneirismo, principalmente. “A contribuição dos povos indígenas na cultura e identidade do gaúcho é, em grande parte, fruto de uma produção intelectual de seleção de elementos pinçados ou escolhidos meticulosamente durante um longo processo de construção da história sul-rio-grandense”, pondera Cláudio. “Nesse processo, muitos elementos da cultura desses povos foram, de forma voluntária ou não, esquecidos ou deixados de lado na contribuição identitária do gauchismo.”
Comunidades
Existem hoje cerca de 34 mil indígenas organizados em mais de uma centena de comunidades no RS, principalmente no alto Uruguai. Em Porto Alegre, são cinco aldeias kaingang, três guarani e uma charrua. Há uma grande circulação de indígenas que vem do interior tanto por questões de saúde quanto de comércio: existe toda uma rede familiar de trocas. A interação com a população urbana se dá, principalmente, por meio do artesanato, que lhes permite o acesso à renda.
Apenas recentemente os indígenas conquistaram a oportunidade de constituir comunidades nos seus antigos territórios. “São pequenos espaços, como todos os outros espaços indígenas no estado, mas demonstram pontinhos no território para o modo de viver dos indígenas. A manutenção desse modo de viver tem sido impactada pela expansão da urbanização, que acaba destruindo as áreas naturais que ainda existem”, diz Rodrigo. “Por fazerem o manejo ambiental, é importante que esses ambientes sejam mantidos enquanto espaços naturais, para a própria saúde do ambiente urbano”, avalia.
Meio ambiente
Esse manejo é uma das principais características dos povos autóctones: a adaptação aos ambientes, e não a sua transformação. “Os povos pesquisaram a biodiversidade de cada região e adensaram ao que já existia”, conta Rodrigo. Exemplos são a araucária, uma árvore em grande parte cultivada pelos kaingang e xokleng, assim como o coqueiro jerivá, cultivado pelos guarani.
Para Rodrigo, a manutenção do modo de viver indígena está ligada à própria sobrevivência sustentável, preservando o meio ambiente para as próximas gerações. “Apesar de vermos interesses anti-indígenas, acredito que eles são segmentados, de alguns grupos ou pessoas que não pensam na própria sustentabilidade, pois uma contribuição fundamental dos indígenas é no equilíbrio ambiental do planeta: a maioria das áreas ambientalmente preservadas o são exatamente porque existem indígenas que cuidam delas”, analisa. “Acredito que tem lugar para todo mundo e os espaços onde os indígenas mantêm vínculos de relação com a terra precisam ser respeitados.”

Preservação
Em 2007, a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas estabeleceu diretrizes no plano internacional, como o direito de autonomia e de autodeterminação. Um grande passo para essas sociedades e a sua forma própria de fazer política, economia e cultura.
A resistência cultural desses povos é antiga, mas as conquistas políticas são bem recentes. Rodrigo lembra que, antes da Constituição Federal de 1988, essas populações eram vitimadas por políticas de tutela: o Estado, que deveria protegê-los, explorava as suas terras e a sua mão de obra. Apenas nas últimas décadas houve alguma reparação: foram devolvidos às comunidades indígenas cerca de 20 mil hectares de terras colonizadas (sendo que o Estado indenizou os agricultores retirados para que refizessem o seu trabalho em outra região).
A melhora também é sentida na constituição de escolas indígenas, na maior manifestação da sua cultura e na presença indígena em universidades, seja como fonte de pesquisa ou, efetivamente, como pesquisadores. “Em geral, tem-se avançado pela própria luta dos indígenas, que, mesmo com toda a pressão contrária, é muito pacífica: eles conseguem avançar na constituição de políticas públicas e no reconhecimento de terras mesmo que leve muito tempo”, diz Rodrigo.
Reconhecimento e diálogo
O reconhecimento da história e da presença desses povos na cultura regional é tão importante que, em 2008, foi instituída a Lei nº 11.645, que incluiu no currículo oficial da rede de ensino fundamental e médio o tema “História e cultura afro-brasileira e indígena”. “É mais um esforço para que consigamos incorporar ao nosso processo educativo e civilizatório conhecimentos da diversidade cultural brasileira”, avalia Cláudio. “Mas ainda existe um longo caminho para percorrer até que a sociedade perceba e atribua valor e importância à contribuição dos indígenas e africanos. Exposições em museus, publicações de fácil acesso, produção de filmes e minisséries poderão ser movimentos que ajudem a popularizar esses conhecimentos.” Para Rodrigo, também é fundamental dialogar com os próprios povos indígenas que existem, no sentido de compartilhar esses conhecimentos a partir do ponto de vista deles, pois muito pouco está registrado por escrito.
*As palavras indígenas não levam plural, como é recorrente demonstrado por estudiosos do tema. Portanto, a grafia é “os charrua”, “os guarani”, e assim por diante.
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