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“Torto arado” e o Brasil que precisa ser lido

  • Foto do escritor: Letícia Garcia
    Letícia Garcia
  • 21 de out. de 2021
  • 5 min de leitura

Atualizado: 22 de out. de 2021

Se você acompanha o universo literário no Brasil, já deve ter ouvido falar de “Torto arado”, primeiro romance de Itamar Vieira Jr (Todavia Livros, 2021). Este ano, a obra estourou a bolha da internet e ganhou ainda mais visibilidade, ficando entre os mais vendidos no país e com o autor aparecendo em entrevistas para programas de TV aberta.


O livro estava na minha lista há um tempinho e uma série de acontecimentos me levou à leitura. Ganhei “Torto arado” de aniversário de uma amiga e, pouco tempo depois, outras duas amigas falaram que queriam ler. Então resolvemos nos organizar para ler juntas o quanto antes.

Eu fui para as páginas com altas expectativas, o que muitas vezes acaba atrapalhando um pouco. Mas “Torto arado” faz jus a todo o hype que se criou em torno dele. Não só por ser maravilhosamente bem escrito, fazendo a leitura andar de forma extraordinária, mas também por todas as temáticas que o autor reúne, expondo as feridas de um Brasil preso ao seu passado — um Brasil que precisa ser lido.


[esta resenha contém alguns spoilers]


Irmãs e permanências

Há muito a se falar sobre este livro e eu não pretendo falar sobre tudo, mas sobre as coisas que mais me tocaram. Por isso preciso começar dizendo que “Torto arado” traz a história de duas irmãs. Talvez pela carência de ler obras que abordam essa relação, para mim foi uma feliz surpresa encontrar as irmãs Bibiana e Belonísia como protagonistas. Apesar de trazer o conflito, como toda história de irmãs costuma trazer, a obra não se limita a distanciar as personagens, mas costura a trama desta complexa relação com delicadeza e propósito.


Destaco um trecho em especial, fala de Belonísia: “Durante algum tempo, pensei que pudesse haver uma ruptura entre nossas famílias, mas o perdão aflorava da bênção que poderia ser o retorno de alguém de qual somos parte. Essa poderosa frase final reúne em poucas palavras o amor entre irmãs, uma amizade que nasce dentro de alguém que faz parte de nós.


Mas é inegável que também estão no centro da obra as pautas sociais. A questão do trabalho, costurada com questões raciais, refletem as heranças de um país fundado sobre a escravização de pessoas, que saíram da exploração escravagista sem amparo social e foram levados à situações de servidão, retratadas pelas personagens da obra, e que são uma cruel realidade.


O autor propositalmente não indica em que ano se passa a obra, pois um dos seus temas é a permanência — do desamparo e de trabalhos análogos à escravidão, que se seguiram à abolição e que seguem surgindo nos noticiários ainda hoje.


Terra e espiritualidade

A tomada de consciência das personagens vai acontecendo de forma gradual ao longo do livro, levando à revolta, impulsionada por algumas personagens que conseguem sair da região e colher informações além. Nisso, o papel da educação é devidamente exaltado.


O discurso de Bibiana é extremamente marcante e didático, guiando quem não pescou as ideais até então: “Quando deram a liberdade aos negros, nosso abandono continuou. O povo vagou de terra em terra pedindo abrigo, passando fome, se sujeitando a trabalhar por nada. Se sujeitando a trabalhar por morada. A mesma escravidão de antes fantasiada de liberdade”.


Ao mesmo tempo, a relação das pessoas com a terra, íntima e visceral, é narrada com uma quase ternura, principalmente quando se trata de Belonísia. As pessoas pertencem à terra tanto quanto esta pertence a quem faz frutos dela, apesar da situação.


A espiritualidade também está muito presente, o movimento e a força nutridos pela fé. O autor traz o jarê, prática religiosa de matriz africana muito específica da região da Chapada Diamantina, na Bahia, onde se passa a história, que eu não conhecia até então. E é pela via espiritual que um tanto de magia acaba entrando na história.


Narrativa e leituras

Algumas coisas me incomodaram no livro, e a primeira delas foi a demora para dizer qual das irmãs havia passado pelo incidente trágico. Eu só consegui me concentrar mesmo depois de descobrir qual delas foi, pois ficava tentando pescar a informação nas entrelinhas o tempo todo.


A outra foi a pouca variação entre as vozes narrativas, que não ficou muito demarcada para mim, a ponto de eu às vezes esquecer quem estava narrando a terceira parte e enxergá-la como um narrador neutro em terceira pessoa. Notei que essa observação apareceu na leitura de outras pessoas sobre a obra também.


Uma dessas leituras trouxe algo em que fiquei pensando. Foi a observação de Cecília Garcia Marcon no podcast 30:MIN sobre como o autor havia sido, neste que é seu primeiro romance, alçado alto ao posto de “o novo Guimarães Rosa”. Enquanto isso, diversas autoras com ampla produção seguem sendo tratadas como “promessas da literatura” e não ganham o devido reconhecimento. E aí cito inclusive Ana Maria Gonçalves, com seu fenomenal livro “Um defeito de cor” (que estou lendo), que escreve há anos e eu só conheci porque convivo com leitoras antenadas. Como a própria Cecília diz, isso não tem absolutamente nada a ver com o autor, um autor negro que precisou romper barreiras e criou uma obra incrível. Tem a ver com a sociedade patriarcal em que ainda vivemos.

Foto de Giovanni Marrozzini que inspirou a ilustração de Linoca Souza para a capa de "Torto arado".

Família e mulheres

Itamar traz com sensibilidade para sua narrativa personagens principais que são mulheres. Além das irmãs protagonistas, temos Donana, a avó de Bibiana e Belonísia.


Donana me fez pensar muito sobre o isolamento que acaba existindo dentro das famílias. Com uma história importante e vivências dolorosas, Donana não falava com ninguém sobre a mala guardada, talvez mesmo pelas feridas que carregava de seu passado. Mas será que o “não falar” fez crescer a curiosidade das netas, o que levou à trágica cena que abre o livro? Será que, se não houvesse tanto mistério, haveria a curiosidade? Será que a distância imposta pelo silêncio não empurrou certos acontecimentos para a frente?


O silêncio de Donana e a perda da língua de Belonísia me pareceram histórias conectadas sobre as coisas que perdemos por não falarmos e não ouvirmos aqueles sob nosso teto.


Ao longo do livro, acompanhamos os caminhos que as mulheres percorrem — e que muitas vezes são impostos a elas. Também estão ali as relações de quase posse estabelecidas entre homens e mulheres e todas as problemáticas machistas ligadas a esta dinâmica.


Uma das frases mais importantes que destaco está ligada a um momento de violência vivido pela personagem Maria Cabocla. Mas que acho que não se limita ao contexto da cena e poderia resumir o sentimento do livro, que reúne tantas histórias de dor e resiliência, mas também de uma esperança de mudança: “Sua raiva dizia muito das dores da alma — e sobre estas ela não falou —, aquelas que demoram a curar, as que no meio das lembranças precisamos afastar com um gesto de negação para que não se abata sobre nós o desânimo.


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